Por fim, opero aqui, duas décadas mais tarde, uma segunda aproximação à poesia do Manel, saudoso amigo e camarada com alma de maltês, para quem a vida era tão pouca e o mundo tão grande, tentando desvendar porventura qualquer novo aspecto na riqueza da sua criatividade e oficina poética, de modo a dar igualmente um significado especial às homenagens em curso no centenário do nascimento do grande poeta.
Manuel Lopes Fonseca fica conhecido para sempre na História da Literatura Portuguesa e identificado na convivialidade social como Manuel da Fonseca. Nasceu a 15 de Outubro de 1911 em Santiago do Cacém, ainda vila em vida do poeta, mas promovida nos últimos anos a cidade. Faleceu em Lisboa a 11 de Março de 1993. Frequentou a escola primária na sua terra natal, fez estudos secundários em Lisboa (Liceu Camões entre outras escolas) e frequentou Belas-Artes. Deixou alguns retratos de amigos e confrades, nomeadamente um de outro imenso romancista, José Cardoso Pires, companheiro de tertúlias.
A sua vida torna-se neste período um vaivém entre a capital e o Alentejo, o que lhe reverterá em competência e à-vontade para escrever com mestria sobre ambos os espaços, gentes, vivências e lutas.
Nos anos duríssimos da ditadura salazarista, torna-se membro do Partido Comunista Português e adere ao grupo literário do Novo Cancioneiro em Coimbra com quem perfilha afinidades de ideário estético-literário. Nestes anos, as dificuldades são extremamente penosas com a guerra civil espanhola em fundo e a Segunda Guerra Mundial já no horizonte próximo, hecatombe que provocará 60 milhões de mortos e destruições maciças no espaço euro-asiático e norte-africano. Manuel da Fonseca convive com uma plêiade que se poderá considerar na época uma aristocracia da cultura, entre escritores, artistas e cientistas e deles recebe uma influência enriquecedora e duradoura. Entre essas personalidades, seria de destacar:
Bento de Jesus Caraça, Alves Redol, Ferreira de Castro, José Gomes Ferreira, Armindo Rodrigues, Manuel Mendes, Rodrigues Miguéis, Maria Keill, Keill do Amaral, Manuel Ribeiro Pavia …Os cafés lisboetas Palladium, Portugal e Madrid eram lugares de encontro desta juventude inquieta pelos rumos do país e do mundo e cada um chegava com seus poemas, capítulos de romance, peças de teatro, crónicas ou outros escritos com que se pretendia transformar a realidade e não só interpretá-la, como se fez ao longo dos séculos e se atesta em boa parte da História da Filosofia.
Entre os poetas e escritores pertencentes ao grupo do Novo Cancioneiro, podemos distinguir: o médico Fernando Namora, o professor, crítico e artista Mário Dionísio, João José Cochofel, crítico literário e musical, Director da Academia dos Amadores de Música e Presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores, Joaquim Namorado, poeta, destacado colaborador de Vértice, Sol Nascente e O Diabo, o poeta Álvaro Feijó, o poeta e ficionista Carlos de Oliveira, o poeta Sidónio Muralha que em 1942 emigra para o Brasil, o geógrafo Francisco José Tenreiro, natural de São Tomé e arauto da negritude, Políbio Gomes dos Santos, estudante universitário e poeta, falecido precocemente.
O neo-realismo surge da luta que se travava em condições muito difíceis, surge no ideal da juventude generosa, na sua vontade profunda de dádiva e na luta pela libertação da humanidade contra os interesses mesquinhos, contra a indiferença, contra a paz podre. Arte pela arte? Abstencionismo no que toca aos problemas reais da sociedade? Torres de marfim? Subjectivismo? Preocupar-se sobretudo com o próprio umbigo? Ser cúmplice do estado de injustiça? Não, o neo-realismo coloca-se claramente na linha de resistência e de libertação, vem de grandes valores duma axiologia positiva e optimista (generosidade, fraternidade, inquietação, sede de justiça e de verdade…), o movimento estético irrompeu destas preocupações e não de qualquer telegrama de Jdanov. Em revistas onde os neo-realistas publicavam como Sol Nascente, dava-se a conhecer a grande poesia internacional, Brecht, Aragon, Éluard, Nazim Hikmet, Neruda, Guillén, Alberti, Maiakovski, Gatto … poetas solidários com o destino dos povos e dos países, poesia de intervenção. Quando um ensaísta como Eduardo Lourenço afirma, do alto do seu cinismo intelectual, que “… para tudo resumir numa palavra, faltou ao neo-realismo aquele apetite de total lucidez e ‘profunda liberdade’ que é a essência de toda a palavra poética” (Lourenço 21983: 205) ficamos atónitos como se pode chegar a tal conclusão perante a realidade de então e perante os factos sobejamente conhecidos. Fala o mesmo autor em “excesso de sentido”, em “grau zero de ambiguidade” e em “absorção do significante pelo significado”. É no mínimo estranho que alguém que vem da área da Filosofia chame excesso de sentido ou grau zero de ambiguidade à inteligibilidade neo-realista. Mesmo com censores, ou seja, gente sem quaisquer qualidades, como Manuel da Fonseca nos ensinou, a literatura neo-realista prima pela sua clareza, pela sua claridade, envolta na sua forma artística, confrontada, como qualquer outra corrente estética, com a dialéctica entre forma e fundo. A absorção do significante pelo significado pode ser frase retoricamente de grande efeito, mas não significa rigorosamente nada e revela um conhecimento defeituoso da teoria de Ferdinand de Saussure, criador deste dois conceitos. Em vez de poesia transcendente, abstencionista, metafísica, psicologista, evoluindo entre o umbigo e um “deus-Deus”, o neo-realismo constrói na base social a sua utopia, quer dizer, constrói-se na luta de classes, no retrato social, na vida real das camadas populares, dos trabalhadores e dos camponeses, na imanência em torno de um “deus” que não é Deus, mas pode ser rebelião, revolta, dignidade e, em última instância, Revolução. Ponto final, parágrafo!
Em 1964, numa altura em que assumia a presidência da Sociedade Portuguesa de Escritores e em que esta atribuía a Luandino Vieira o Grande Prémio de Novelística pela sua obra Luuanda, Manuel da Fonseca teve problemas sérios com a Polícia Política do regime fascista, chegando a ser preso e a sentir a brutalidade do tratamento dos facínoras, enquanto a Sociedade Portuguesa de Escritores era obrigada a fechar as portas.
As vicissitudes da luta e da vida fazem com que Manuel da Fonseca tenha de exercer várias profissões ao longo da sua existência, tanto no comércio, numa drogaria (onde vende petróleo ou papel químico …), como na indústria e em agências publicitárias.
São de sempre e de hoje os seus inúmeros leitores e admiradores, assim como as homenagens que se fazem ao escritor, ora de carácter permanente ora em eventos datados. Tanto a Escola Secundária Manuel da Fonseca em Santiago do Cacém como a Biblioteca Municipal Manuel da Fonseca de Castro Verde ilustram bem a homenagem permanente e que ficará de pedra e cal, sendo numerosas as efemérides que honram e relembram de forma vária a sua vida tal como a sua obra.
Destacaremos aqui duas Exposições: Manuel da Fonseca 100 anos em Recortes, de 1 a 31 de Outubro de 2011 na Biblioteca Municipal de Vila Nova de Santo André; e “Por todas as Estradas do Mundo”, exposição patente ao público no Museu Municipal em Santiago do Cacém até 26 de Maio de 2012 em colaboração com o Museu do Neo-Realismo, situado em Vila Franca de Xira (Alentejo Popular 2011: 7, 11).
Também o PCP fez questão de honrar a memória do seu militante (Avante 2011: 13–20), relevando o seu exemplo, além das suas qualidades humanistas. No Suplemento do órgão do Partido, Avante, noticiam-se sessões com declamação de poesia e canto de poemas musicados, publicam-se poemas, contos, além de uma intervenção de fundo do Secretário-Geral onde Jerónimo de Sousa em dado passo cita Álvaro Cunhal numa síntese sobre o escritor: ‘Do camarada que hoje aqui homenageamos disse um dia o camarada Álvaro Cunhal’:
“Manuel da Fonseca foi um dos grandes escritores do nosso século, extraordinário narrador de situações, enquadramentos sociais e paisagísticos, monumentos e caracteres típicos do povo português – nomeadamente do Alentejo; um intelectual visceralmente ligado ao povo ou, se se preferir dizer, um filho do povo cuja obra o fez um intelectual; um amigo de mais de meio século de verdadeira estima; um camarada de ideal, de partido e de luta, cuja serena convicção e confiança o acompanhou até aos últimos tempos da sua vida.”
“Acrescente-se e sublinhe-se que Manuel da Fonseca esteve sempre com o seu partido de sempre, o Partido Comunista Português: na resistência ao fascismo e na luta pela liberdade e pela democracia; na época exaltante da Revolução de Abril; na frente da luta por Abril, face à ofensiva da contra-revolução institucional iniciada pelo primeiro Governo PS/ Mário Soares, em 1976 …”
“É esse homem – o escritor genial que ficará para sempre na história da Literatura Portuguesa; o cidadão exemplar que amava a vida e a verdade e detestava a hipocrisia; o amigo fraterno e solidário de todos os momentos; o militante comunista, cujo exemplo de firmeza ideológica e partidária constituiu uma referência para todos os militantes comunistas – é esse homem que hoje aqui homenageamos, guardando-o, para sempre e tal como ele foi, na nossa memória, e com a consciência de que o seu nome, o seu exemplo e a sua Obra integrarão para sempre a nossa história colectiva.” (Avante 2011: 15)
A Obra agrupa-se em quatro géneros literários fundamentais: poesia, romance, conto e crónica.
Como poeta, Manuel da Fonseca estreia-se com uma edição de autor em 1940, paga colectivamente por confrades (850$00) que para tal se haviam quotizado, dando à estampa Rosa dos Ventos. Seguir-se-iam na sua produção poética Planície em 1941, Poemas dispersos em 1958 e Poemas Completos também em 1958. A sexta edição de Poemas Completos que usamos no presente estudo, com data de 1978, prefaciada por Mário Dionísio, companheiro de escrita e de lutas, contém os seguintes títulos: Rosa dos Ventos – Sete Canções da Vida; Canções da Beira-Mar, O Vagabundo e Outros Motivos Alentejanos, Poemas da Infância, Poemas (Primeira parte), Poemas (segunda parte), Planície, Vila, Para Um Poema a Florbela (I-X), Poemas Dispersos e Poemas Inéditos.
Como romancista, Manuel da Fonseca publica Cerromaior em 1943 (nome literário que dá à sua natalícia Santiago do Cacém: “Em Cerromaior nasci.” – Fonseca 61978: 102) e Seara de Vento em 1958 (obra-prima da novelística neo-realista além de um dos melhores romances de toda a literaura portuguesa).
Como contista dos mais exímios de que há memória, o nosso autor publica Aldeia Nova (1942), O Fogo e as Cinzas (1951), O Retrato (1953), Um Anjo no Trapézio (1968), Tempo de Solidão (1973). Entre os contos, alguns tornam-se inesquecíveis na memória do leitor. Sejam apenas dois os exemplos: Mestre Finezas e O Largo.
Enquanto cronista, Manuel da Fonseca publica Crónicas Algarvias (1986). Na parte final da vida ou já postumamente são editados “À Lareira nos Fundos da Casa Onde o Retorta Tem o Café” “Vagabundo na Cidade”e “Pessoas na Paisagem” in: Diário Popular, entre 1969 e 1971, tendo estes escritos sido englobados nas Obras Completas de Manuel da Fonseca, editadas pela Editora Caminho.
Na derradeira década da sua vida, Manuel da Fonseca ainda organizou e prefaciou com muita competência, de forma longa e circunstanciada, uma excelente Antologia de Contos de Fialho de Almeida, publicada em Beja pela Associação dos Municípios do Distrito (AMDB), no ano de 1984.
No presente escrito, voltamos a ocupar-nos fundamentalmente do poeta como o próprio título indica.
Esta poesia vem da terra transtagana. O autor, porém, não é nenhum provinciano nem regionalista como poderia ser voz corrente nalguns meios, equívoco, aliás, que o poeta cedo desmontou no já longínquo ano de 1960 (em “Diálogo com Manuel da Fonseca”, Gazeta Musical de Todas as Artes, nos. 109–110, Lisboa, Abril–Maio de 1960, in: Fonseca 61978: 16). Como ele próprio fazia questão de referir, era homem da cidade no que esta tem de universal, ao educar os homens para todos os interesses dos outros homens.
No provincianismo, em contrapartida, reinam os horizontes fechados e os preconceitos. A sua poesia canta o Alentejo, inspira-se nele e da sua realidade deriva verdades profundas. Essas ideias, contudo, não se cantonam a esse espaço, antes têm validade universal. Nesta universalidade cabem todos os homens ou a sociedade humana e, como antídoto, a luta é igualmente contra o individualismo (Cf. o grito de Amanda Carrusca em Seara de Vento: “Um homem só não vale nada …”) ou sob forma de convite contra a alienação individual, tal como se exprime no poema “Antes Que Seja Tarde” (ibid.: 148):
Amigo
[…]
deixa os desejos sem rumo
de barco ao deus-dará
e esse ar de renúncia
às coisas do mundo
[…]
Acorda, amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha
abre os braços e luta!
Amigo,
antes de a morte vir
nasce de vez para a vida.
Na sua oficina poética trabalha-se com os sentidos do corpo. Do ponto de vista formal, além dos versos livre e branco, há versos silábicos. Há certa musicalidade ligada ao setessílabo, à medida velha, nas quadras, mas também em estrofes de medida certa e heterométricas, no paralelismo com significantes iterativos (anáforas, epíforas …), na tradição do Romanceiro. A poesia torna-se arte quando neste caso é transmutação da realidade e da experiência por via de um humanismo empenhado na realidade total e, muito particularmente, na realidade social. É por vezes uma poesia onde perpassam tons elegíacos e intimistas, trágicos e heróicos, respirando tanto no verso como na prosa, vivendo em todas as obras. O erotismo, certos acentos telúricos e situações sociais concretas enformam muitos poemas.
O próprio poeta leva um estilo de vida que tem algo de muito poético, uma maneira de estar e de conversar que conduz ao encanto, pela forma como aborda a realidade, dando-lhe aquele toque do seu génio despreocupado, de sarcasmo felino, sem olvidar a voz do “eu lírico” que tem consciência do seu estatuto artístico:
… “Como nasci poeta …” (ibid.: 71)
E, de repente, numa conversa informal, desvenda uma verdade profunda, desmistificando qualquer aspecto do “maravilhoso social” em que a ideologia enganosa das classes dominantes mantém a sociedade por inteiro, alienando a consciência social, política, ideológica e cultural do indivíduo, dos indivíduos, do tecido social.
Voz marcante no efémero movimento Novo Cancioneiro, Manuel da Fonseca soube ir enriquecendo a sua arte, depurando-a (“escrevia muito, mas ainda rasgava mais …”), fazendo dela uma arma de cultura, uma arma de transformação da realidade, seguindo em toda a liberdade criadora postulados da estética neo-realista.
Estava bem consciente da linhagem desta corrente no Realismo e no Naturalismo do século XIX, mas a que se juntava, por um lado, toda a problemática do século XX na sua densidade histórica com suas guerras, devastações, misérias sociais, ausência de liberdade, repressão sobre trabalhadores e camponeses, ditaduras horrendas, fome da maioria e ostentação da riqueza das minorias, enfim, morte, ou numa palavra, uma injustiça de bradar aos céus e, por outro lado, um método dinâmico para interpretar a realidade movente ao alcance da consciência e da inteligência humanas, com base no materialismo histórico e na dialéctica.
Daí também certa poesia do desepero com a esperança em contraponto e a partida para a Vida (com V maiúsculo). A sua voz é a do canto de luta, da luta onde se sofre, mas onde se volta sempre a lutar, no seu posto de luta … poesia que se ergue da terra, se levanta nos sentidos do corpo e adquire asas com a arte. Não há ali registo panfletário a usurpar o lugar do tom nobre para que os homens entendam a luta dos outros homens, para que eles próprios lutem, nasçam de novo para nova vida e para a necessária luta. O indivíduo actual confunde-se no seu destino com o homem de todos os tempos em suas lutas:
E abro clareiras
na floresta milenária do meu caminho. (ibid.: 39)
No ritmo, na musicalidade, em rimas toantes parece-nos ouvir escandidos nas redondilhas maior e menor ecos escondidos onde se consuma a beleza do verso. Poeta do concreto por oposição a F.G. Lorca, sempre mais abstracto, conforme a lição magistral de Manuel Simões, poeta talvez do azul por oposição ainda ao Lorca do “verde que te quiero verde”, poeta da imensa abertura cósmica que é a planície alentejana, abertura que se espelha e se espalha até no espraiar do verso assente na profusão da vogal a ou ainda a vastidão do mar:
Marasmo deste balanço de lago
[…]
Que ansiedade de mar largo (ibid.: 52–53)
já que
… o mar não tem fronteiras nem distâncias
É sempre o mar; (ibid.: 45)
Ou contemplação dos longes e das distâncias e das solidões do Alentejo:
… e parto
para os longes mais longes das distâncias mais longas
sei lá que destinos ignorados (ibid.)
que fazem apetecer a vida toda e tornam o poeta
Livre para todos os caminhos do homem (ibid.)
Enfim, abertura humana que se reflecte numa “visão generosa da vida”, conforme salientou Jorge de Sena:
Que venham todos os pobres da Terra
os ofendidos e humilhados
os torturados
os loucos:
meu abraço é cada vez mais largo
envolve-os a todos! (ibid.: 146)
Segundo Manuel Simões (1979), a obra de Manuel da Fonseca é um resumo da história do povo alentejano. E é verdade. Mas conforme já referido e como Manuel da Fonseca pôs a claro, ele não é um poeta regionalista. A cidade permitia-lhe compreender melhor a vila e o campo. A capital inspirou-lhe até um dos seus mais belos poemas, uma perfeita unidade de forma-conteúdo, de que damos aqui apenas uma quadra:
Tejo que levas as águas
Correndo de par em par
Lava a cidade de mágoas
Leva as mágoas para o mar (Fonseca 61978: 166)
Os temas e motivos regionais atingem nele a dimensão da universalidade, sendo, pelo menos, tão universal como o Lorca andaluz. Em Manuel da Fonseca, temos o maltês, a errância em pessoa, o vagabundo que parte do Largo centro do mundo pelos caminhos do Alentejo, das estradas do mundo, das estradas do acaso, o marginal, o rejeitado, o excluído, o enjeitado, o salteador de estradas, o caminheiro, o pedinte, o mendigo, o herói e o anti-herói, um significante altamente polissémico. Lorca tematiza o “gitano” andaluz.
A sua arte obedece a um passo que é compasso certo, aparentemente espontâneo, mas como o próprio artista confessou, “ser espontâneo dá-lhe muito trabalho”. É o trabalho exigido por um querer sempre insatisfeito e que, por isso mesmo, deve atingir a expressão mais intensa, mais extrema e mais consciente.
Tornou-se logo uma poesia de grande leitura, foi copiada e penetrou cedo nas colectividades recreativas, no associativismo popular e cultural dos anos 40. Quase trinta anos mais tarde, na crise académica de 1969, os estudantes do meu tempo diziam a marcha Almadanim entre um comício e a greve. Cantada foi, de resto, esta poesia pela voz inconfundível do saudoso e malogrado Adriano Correia de Oliveira, essa “voz de menino”, como o próprio Manuel da Fonseca com certeira pontaria a designava.
A obra que até agora mais aprofundou o estudo da poesia de Manuel da Fonseca é, sem sombra de dúvida, o trabalho magnífico da autoria de Manuel Simões, intitulado Garcia Lorca e Manuel da Fonseca: Dois Poetas em Confronto.
Obra de outro poeta e cientista da literatura, a um tempo, que para além das análises de tipo quantitativo relativas à ocorrência dos significantes predominantes, mostra todo um rastreio de temas, motivos e influências muitíssimo bem documentado e convincente, detectando a influência popular, dos romanceiros, e a de Lorca, como os principais fermentos que levedaram Planície, Rosa dos Ventos e Poemas Dispersos.
Como análise muito fina e extremamente segura, detém-se no estudo do cromatismo, dos símbolos, da fauna, da flora, dos numerais, da matéria, do corpo, dos nomes toponímicos e antroponímicos, da metáfora, viva e morta, nos dois grandes poetas. Trabalho que quase atinge a precisão e a minúcia do relojoeiro, é, por certo, de leitura obrigatória para quem deseje estudar os Poemas Completos. Apoiar-nos-emos, portanto ainda e em boa parte, na segurança dos seus dados durante esta nossa deriva.
Os itens lexicais mais recorrentes em Manuel da Fonseca são num primeiro grupo: noite, olhos, vento e estrelas; seguem-se-lhes, num segundo grupo, maltês, seios, peitos, lua, navalha. Se somássemos seios e peitos numa ocorrência única, já que ambos os itens ocupam o mesmo campo semântico, ela passaria para o primeiro grupo vindo logo a seguir a vento. E assim poderíamos imaginar o cerne de toda esta poesia constituído, por um lado, pelos elementos cósmicos (vento, noite, estrelas, lua) e, por outra parte, pelos elementos humanos (o maltês com sua navalha; e a mulher simbolizada por sinédoque em seios ou peitos). Esta parte do corpo parece, de resto, guardar qualquer especial sentido para o poeta. Revela talvez um fascínio inconsciente ou atávico, ligado porventura aos primórdios da existência ou à atracção exercida pela beleza da vida e do amor. Prosseguindo, é, como afirma Manuel Simões, uma “poesia feita de desespero, de desafio dessa violência primitiva em ambiente de navalhas, de luar e de vento” (Simões 1979: 43); ou de guerreiras em feiras do Alentejo.
Poesia também de elementos telúricos que têm a ver com a vida plena, com a mãe terra, com a natureza, o sol, a lua, o vento, o mar, a chuva, o descampado, os corpos, os seios, as aves, a terra batida, a seiva, a ramagem, a folhagem, ou seja, com elementos de uma realidade que o poeta reinventa e canta a par de outros elementos de índole social e cultural, como os mendigos, os vagabundos e os malteses, o largo, as estradas do acaso, os palheiros, as feiras do Alentejo, a moça perfeita de lindos olhos, o “monte”, o rafeiro, o lavrador, o pão com azeitonas, a violência, a fraternidade …
Só muito raramente o realismo parece escapar, ao nível da expressão metafórica, para um campo onde surgem elementos surrealistas. Darei um único exemplo: seja o verso
Mugem bezerros com rosas nos cornos (Fonseca 61978: 40)
onde talvez haja algo dessa qualidade estético-literária.
Estamos antes, e quase sempre, perante uma poesia onde há muita luta de contrários, dialéctica de contradições em contínuo movimento:
- poesia andarilha dos caminhos do Alentejo e da evocação dos montados, dos moinhos, das queimadas, do vento e do fogo, poesia da impaciência perante as desgraças humanas que tematiza os humilhados e ofendidos, os torturados, os loucos …
- poesia do puro amor das gentes sem posses nem prendas, poesia da convivência, da fraternidade e da convivialidade alentejanas …
- poesia da amargura dos sonhos desfeitos, poesia da ansiedade de partir e do desejo de Vida …
- poesia de vagabundos que nada têm e andam com o sol na algibeira, poesia de malteses altivos que não aceitam esmolas e se pagam com uma história …
- poesia de quem ocupa um posto de luta, poesia de quem tem tudo e a quem tudo falta …
- poesia da oralidade musical, poesia que não perdoa a paz podre …
- poesia que verbera a inutilidade da vida quando esta se reduz a um aborrecimento de burocrata …
- poesia de gente real (que come e bebe), poesia da saudade, poesia onde há um farol para as naus perdidas no nevoeiro, poesia que nos incita a ir como irmãos, colher os frutos ou fazer qualquer coisa de louco ou heróico, poesia da luta que o tempo traz e da vida que tensa se escoa entre o passado e o futuro, ou poesia do que haja de mais surpreendente;
Quando chega o domingo
Faço tenção de todas as coisas mais belas
Que um homem pode fazer na vida (ibid.: 93)
No seu estudo, Manuel Simões diz (1979: 76) numa belíssima síntese que Manuel da Fonseca é “um poeta neo-realista armado ideologicamente contra o maravilhoso”. A este respeito ocorre-nos novamente a tal espontaneidade muito trabalhosa que se traduz por uma sabedoria político-filosófica, uma sabedoria moral duma claridade estonteante. Sirva de exemplo o poema D. Abastança, esposa do Comendador. O tema é a caridadezinha. E então
[…]
Ela dá ele subtrai
Fazem como lhes convém
Ela aos pobres dá uns cobres
Ele incansável lá vai
Com o que tira a quem não tem
Fazendo mais e mais pobres
[…]
Todo o que milhões furtou
Sempre ao bem fazer foi dado
Pouco custa a quem roubou
Dar pouco a quem foi roubado
Oh engano sempre novo
De tão estranha caridade
Feita com dinheiro do povo
Ao povo desta cidade (Fonseca 61978 : 176)
O maravilhoso social aí está desmistificado, embora a alienação continue. A caridadezinha, que vem dos cofres cheios de mais-valia roubada aos que a produziram, não é caridade, é farisaísmo, é cinismo. A verdadeira caridade vem expressa no poema “Saibam todos em Montemaior” assim:
E o gesto franco do lançar da semente
era distribuir pão por toda a gente (ibid.: 185)
A luta de classes perpassa ainda no plano simbólico-cultural em que o povo se diverte na rua achando imenso prazer na Tuna do Zé Jacinto que toca a marcha Almadanim (ibid.: 126):
[…]
A gente cantava assobiava aquilo de cor
[…]
e para mim domingo não era domingo
era a marcha Almadanim!
A burguesia (as senhoras e os senhores), contudo, não achava piada nenhuma àquela manifestação cultural do povo, e desvalorizava-a, considerando-a indecente e coisa de doidos:
Entanto as senhoras não gostavam
faziam má cara dizendo coisas
e os senhores também não gostavam
faziam má cara para a Tuna
O povo, no entanto, na sua imensa alegria de movimento, música, dança e cor enchia as ruas e não desistia, pois, o sentido de dignidade e a consciência de classe naquela gente era imparável, a repressão sofrida era assim de novo posta em causa e recusada pela combatividade; e a Tuna na rua
não era música era raiva
aquela marcha Almadanim.
No lindo poema “As Balas” fala-se-nos do contributo das estações do ano e do tempo para a felicidade do ser humano, consistindo esta em conquistar o Bem e a Paz num mundo novo. As balas, porém, só dão roubo, fome, ruína, peste, crime, morte e sangue derramado. É um poema perenemente jovem, para jovens de todas as idades, para que saibamos ou aprendamos a aborrecer a guerra, o militarismo, o espírito belicoso, o nacional-chauvinismo pacóvio ou letrado, e sejamos humanos, apenas humanos, amantes da paz. Este ideário prossegue em “Tu e eu meu amor” e aí o poeta nos ensina que:
[…] a eternidade
é ser livre e amar (ibid.: 180)
Manuel Simões acentuou bem o carácter didáctico e de exortação nesta poesia de acentos épicos com a visão de um mundo novo (diversamente do que acontece por oposição com Lorca, mais magnético, mais lírico, poeta do amor, da morte e do sangue) (Simões 1979: 126).
A realidade social e a atmosfera no Alentejo modificaram-se profundamente após a libertação de Abril. Como o poeta o afirmou em entrevista televisiva ao jornalista Carlos Cruz, “o homem também modifica a sociedade e de que maneira!”, para logo acrescentar: “O 25 de Abril é a coisa mais explícita do Neo-realismo”.
Persistem hoje, todavia, fenómenos negativos na região do Alentejo devido a um regresso em muitos aspectos ao tempo antigo, assim como ao não cumprimento das potencialidades dessa revolução interrompida e inacabada onde, por exemplo, foi acintosamente destruída uma Reforma Agrária de grande alcance social, económico e cultural.
Essa maldade histórica é responsável até hoje pelo défice da balança alimentar no país onde 60 a 70 por cento do que se come ou consome é importado. A leitura de Poemas Completos continua na ordem do dia pelo seu valor estético intemporal, reganhando nova actualidade e é literatura que se reafirma como liberatura.
Bom é que todos saibam, sem equívocos, onde o poeta sempre esteve, onde se situa com essa humildade de quem é verdadeiramente grande:
De estar onde estou não me temo nem louvo
Que sou todos sabem um homem do povo (Fonseca 61978: 185)
Manuel da Fonseca nunca se temeu nem louvou de ser o que era!
Bibliografia:
Fonseca, Manuel da (61978): Poemas completos, Lisboa. Com Prefácio de Mário Dionísio.
Torres, Alexandre Pinheiro, Pref., Org. e Notas (1989): Novo Cancioneiro, Lisboa, 58–65; 207–324.
Coelho, Jacinto do Prado (31978): Dicionário de Literatura Portuguesa, Porto. Em especial, verbetes sobre o Alentejo, Neo-realismo e Novo Cancioneiro: Tomo 1: 24, 35, 36, 199, 214; Tomo 2: 468; Tomo 3: 727, 744, 875, 935.
Lourenço, Eduardo (21983): Sentido e Forma da Poesia Neo-realista, Lisboa.
Rosa, Luciano Caetano da (1990): “Não me temo nem louvo”, in: Lusorama Nr. 12, Juni, 29–33.
Simões, Manuel (1979): Garcia Lorca e Manuel da Fonseca: Dois Poetas em Confronto, Milano.
Imprensa:
“Centenário do nascimento de Manuel da Fonseca, camarada de Partido e de Luta”, in: Avante, 20.10.2011: 13–20.
“Por todas as Estradas do Mundo”, in: Alentejo Popular, 20.10.2011: 1, 7, 11.
Internet:
Acesso a vários sites sobre Manuel da Fonseca (13.01.2012):